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Ad hominem abusivo: questionando o caráter do argumentador

- 4 min leitura

Imagine que você está participando de um debate na sala de aula sobre aquecimento global. Um dos estudantes apresenta dados sobre o aumento das temperaturas globais e argumenta que é urgente reduzir a emissão de gases poluentes. No entanto, em vez de questionar os dados ou discutir o argumento, outro colega responde: 

“Você nem se importa com a escola, falta várias aulas e já até repetiu de ano. Quem vai levar sua opinião a sério?”

O que aconteceu aqui? O argumento central sobre o aquecimento global foi deixado de lado, e o ataque foi diretamente à pessoa que o apresentou. Esse tipo de ataque é chamado de falácia ad hominem abusivo, que ocorre quando é feita uma acusação direta contra o caráter do indivíduo, colocando em dúvida sua credibilidade através desse ataque.

O ataque pode ser direcionado a ações passadas desse indivíduo, como nesse exemplo, a suas relações pessoais, etnia, crença religiosa, afiliações políticas, orientação sexual ou qualquer outra característica que possa ser vista como negativa. Além disso, o ataque pessoal pode pôr em questão a capacidade cognitiva da pessoa, questionando sua formação escolar ou até mesmo sugerindo que é louca e, portanto, não merece atenção.

O argumento ad hominem acima é claramente uma falácia porque a crítica ao comportamento do colega – faltar aulas ou não ser comprometido com os estudos – é completamente irrelevante para a discussão dos dados sobre aquecimento global. Esses dados são verdadeiros ou falsos independente do comportamento de quem está defendendo eles.

No entanto, os argumentos ad hominem abusivos nem sempre são falaciosos. Em alguns contextos, atacar o caráter ou o comportamento de uma pessoa pode ser relevante para a questão discutida. 

Ad hominem abusivo no tribunal

Imagine o julgamento de um caso de assassinato. A principal evidência usada pela acusação é o testemunho de um homem que afirma ter visto o crime ser cometido. Para tentar lançar dúvida sobre a credibilidade das afirmações da testemunha, a defesa apresenta o seguinte argumento:

A testemunha diz ter visto meu cliente cometer o assassinato, porém não devemos acreditar no que afirma. A testemunha é conhecida por ser alcoólatra e seus vizinhos dizem que ele tem uma série de dívidas com eles e se recusa a pagar. Vamos condenar uma pessoa inocente com base nas afirmações de uma pessoa como essa?

O argumento apresentado pelo advogado de defesa é um exemplo clássico de ad hominem abusivo já que ataca o caráter da testemunha, falando de suas ações e comportamentos bastante reprováveis.

No entanto, é uma falácia? Em um tribunal, quando se discute as afirmações de uma testemunha, é natural se questionar se ela é uma pessoa confiável e se sua palavra é digna de ser levada em consideração. No entanto, a fala do advogado mostra fatos que não necessariamente põem em dúvida a credibilidade da pessoa nesse caso. Se o debate fosse se podemos ou não emprestar dinheiro para ele, certamente a informação seria de extrema relevância. No entanto, para julgar se ele está falando a verdade no caso em questão, não se pode dizer o mesmo.

Agora suponha que o advogado afirme o seguinte: 

Não devemos acreditar no que afirma. Há comprovações de que essa testemunha já mentiu em situações semelhantes no passado, inclusive durante outro julgamento. 

 Nesse caso, o ataque ao caráter da testemunha, apontando que ela já mentiu em uma situação parecida, torna-se pertinente. Aqui, o ad hominem deixa de ser uma falácia, pois a credibilidade da testemunha é diretamente relevante para avaliar a validade do seu depoimento.

Ad hominem abusivo na política

Ataques contra a pessoa são frequentes no discurso político. Durante as campanhas presidenciais, por exemplo, uma grande parte do tempo e dinheiro é gasto para fazer propaganda negativa sobre o candidato adversário. Essa é uma forma comum e eficiente de criticar um oponente.

Muitas mulheres que concorrem ou exercem funções políticas são atacadas por não terem filhos.1 Um exemplo claro de ad hominem abusivo, já que é uma característica pessoal que não tem nada a ver com as habilidades exigidas nesse contexto.

Porém, é sempre falacioso o uso de um argumento ad hominem que coloca em questão o caráter de um político? Não. Há casos em que é perfeitamente legítimo seu uso. Considere um exemplo fictício, bastante semelhante a casos reais.

Em um debate político, um dos candidatos ataca seu adversário afirmando que durante os quatro anos que esteve na prefeitura, cumpriu apenas a metade de suas promessas, e portanto não deve ser levado à sério quando afirma que irá fazer muitas coisas em seu próximo mandato.

O argumento do exemplo acima é claramente um ad hominem abusivo, que coloca em questão o caráter do adversário. No entanto, se trata de uma forma de argumentação legítima nesse contexto. Uma eleição, em parte, envolve um debate sobre as qualidades pessoais de cada um dos candidatos, se são honestos, se são capazes de trabalhar pelo bem público, se são comprometidos com o trabalho, etc. Então é natural que acusações do tipo ad hominem sejam feitas.

Ainda assim, é necessário tomar cuidado nesses casos. Um dos problemas é o uso excessivo de ataques ad hominem, o que acaba impedindo a discussão de ideias sobre como solucionar os problemas que enfrenta a população.

Um segundo problema ocorre quando ataques ad hominem tratam de características pessoais que fazem parte da vida privada. Isso ocorre quando, por exemplo, um político é acusado de ser gay, ser ateu, ser “mole”, ser mulher que não tem filhos, ser pobre etc. Essas são características pessoais que não tornam ninguém mais ou menos digno de confiança, ou propenso a fazer um bom trabalho.

Referência

FLOWERS, P. Kamala Harris não tem filhos biológicos, mas por que as críticas a ela são tão irritantes? Disponível em: <https://theconversation.com/kamala-harris-nao-tem-filhos-biologicos-mas-por-que-as-criticas-a-ela-sao-tao-irritantes-235745>. Acesso em: 20 set. 2024.

WALTON, D. Lógica Informal: manual de argumentação crítica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.